Mini conto – Memento Flora

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 Do tronco retorcido saíam galhos perturbadores. Os ramos complexos começavam na base lenhosa, numa forma parecida com as asas de uma borboleta muito grande, da qual crescia um galho sinuoso e serrilhado. Do meio desta formação, saíam diversos ramos finos, que curvavam e uniam-se em frente, criando uma gaiola de madeira. No extremo do ramo central, ele afunilava e diminuía, dando lugar à flor imensa de um amarelo esbranquiçado deprimente.

 A menina observou aquela planta retorcida por um tempo, todos os galhos a encarando. Eles parecem ossos humanos, ela pensou. Esqueletos quase completos, faltando só os braços e as pernas. As flores eram crânios banguelas, sorridentes e atentos.

 Ela ficou retorcendo a sacola vazia nas mãos, o vento esvoaçando a barra do vestido, pensando se entraria ou não no casarão que sabia existir para além do pomar agourento. Um fazendeiro que andava pela estrada lá atrás a aconselhou: – Nem perca o seu tempo. Quem entra nesse lote maldito não costuma sair.

 Mas a menina precisava. Era uma promessa e uma chance, tudo que ela tinha. Conferiu o endereço novamente e esperou o homem se afastar, então, arrumou a mochila sobre os ombros, alisou a sacola nas mãos e adentrou o bosque de crânios.

 Um passo atrás do outro, pelo caminho de ladrilhos que serpenteava entre as árvores.  Haviam clareiras com bancos de praça e escadas de pedra onde o terreno variava. Seria um lugar muito belo, se a companhia floral fosse outra.

 O vento as dava movimento, e do canto dos olhos, as flores sempre pareciam dispostas a dar botes. Mas quanto mais exemplares ela via, mais claro ficava que eram apenas isso: flores. O botão lembrava o crânio de um bebê, e desabrochada, era um adulto. Quando seu tempo se esgotava, as pétalas desfaziam-se assim como a ilusão de ossos.

 Abelhas rechonchudas zuniam de flor em flor. Um pássaro cantava, distante. No interior do pomar havia paz.

 A caminhada a levou até um paredão de pedra, a provável faixada do dito casarão, com suas paredes de blocos unidos sem rejunte, e as janelas como fendas cobertas de vidro colorido. Três degraus marcavam a entrada com uma imensa porta entalhada, os galhos do pomar representados em diferentes padrões. Ela estava entreaberta, deixando o calor de dentro escapar. Nada além da imensa faixada podia ser visto da construção.

 A menina ficou um momento ali parada, onde as árvores ao vento soavam como o mar. O sujeito parecia agradável quando ela telefonou, umas horas atrás. Ele concordou com sua visita, e disse que estaria a esperando.

 Ela adentrou com timidez, e impressionou-se com a escuridão do salão, iluminado apenas por uma lareira em seu extremo oposto. Os passos ecoaram no chão coberto de arabescos. Próximo da lareira havia o vulto de um home sentado numa poltrona, envolto em cobertores.

 – Então, minha pequena – A voz que ela conhecia disse, – Você não sentiu medo ao adentrar o meu pomar? Os outros sempre deram meia-volta. Por favor, sente-se.

 O homem grisalho tinha o olhar perfurante de uma ave de rapina, e a pele lenhosa podia fazê-lo sumir entre as árvores lá fora. Ele a esperava, mas encarava a visita mais como experimento do que socialização.

 Ela subiu na poltrona em frente à dele, e ficou com os pés balançando no ar.

– Tive medo, sim senhor. Nunca tinha visto de verdade uma, uma ar… Árvere. Elas são feias, mas fazem nada.

– Nunca viu uma…?!

 Ele olhou pelo vidro claro, ao lado da lareira. Dali era possível ver os fundos do imóvel. A pradaria se estendia até o mar, e na baía distante encontrava-se a vila natal daquela garota. Por toda a vista, nenhuma planta passava da altura dos joelhos. Ele a encarou. É, era mais nova que os anteriores.

 Então o boticário foi inteligente e arranjou uma assistente nascida depois do Fogo.

– Bom, – Ele começou, preparando-se para levantar. – Vou buscar a sua encomenda. Está com sede, com fome? Tem água na cozinha, é na porta à direita.

– Não, senhor. Estou bem.

– Ah, nesse caso… Quer me ajudar a colher as massas?

 Nisso eles seguiram para o pomar, o homem se apoiando-se numa bengala e a menina com a sacola. Eles seguiram para uma árvore em que quase todas as flores estavam ressecadas e despetalando, revelando o fruto maciço em seu interior.

 Com as mãos calejadas pela prática, o senhor livrou o fruto daquele ninho seco. Era imenso, brilhante e coberto de reentrâncias labirínticas, além de ser dividido em duas metades simétricas.

 As massas cinzentas preencheram a sacola da menina, que prestava atenção ao processo. Vez ou outra, ele a olhava. Estaria incomodado? Surpreso? Curioso? Ela interrompeu o silêncio.

– Como que só o senhor tem árveres na costa inteira?

– Ár-vo-res – Ele corrigiu, – Todos os jardins tinham árvores, tempos atrás. Elas cresciam, selvagens ou domesticadas, de todas as formas e cores, com flores e frutos de funções mais variadas. Mas o Fogo levou quase todas, antes de você nascer. Continuo com as minhas só porque moro afastado da vila.

Quando a sacola tinha sido preenchida, a menina entregou o dinheiro do boticário, referente à encomenda.

 Ainda assim, ela não partiu, continuou pelo pomar observando as flores e dando a volta nos troncos, por vezes olhando de relance para o velho senhor.

 – Mais alguma coisa? – Ele por fim perguntou.

 Ela parecia envergonhada, e por um momento, ele achou que a menina iria embora correndo.

– A minha mamãe está muito doente. Eu ajudo o Seu Tadeu com os remédios da vila, e ele vende o da mamãe mais barato para mim. Mas ainda é muito caro, até porque sou eu mesma quem espreme as massas na garrafinha que mamãe toma todo mês! – Ela disse, de cara emburrada, – Eu sei fazer o remédio em casa, mas se uma das massas sumir da encomenda, o Seu Tadeu vai ficar uma fera… Eu posso levar uma para mim? Eu trouxe minhas moedinhas…

 O velho riu. – É claro que pode levar. E não precisa pagar, sei que fará bom uso dela.

 A menina sorria ao guardar a massa que ele a deu na mochila. Ela estava para ir embora, quando o velho teve uma epifania.

 – Espere! Tem mais uma coisa que você poderia usar melhor que eu. Vou ter que procurar.

 Por um quarto de hora a menina seguiu o senhor pelo casarão, parando na frente das salas em que ele entrava e ouvindo armários e gavetas sendo abertos, além de móveis arrastados.

 Nos encontrões pelo corredor, ele trocava algumas palavras com a hóspede.

 – Meus frutos são capazes de curar diversas doenças, mas as pessoas não podem saber de onde eles vêm. Esqueceram as árvores, esqueceram da própria importância! Eram tão belas as árvores dos artistas… Só eu posso plantar as Memento Flora, mas quem plantará as flores da primavera…?

 A tosse arrastada marcou o fim da busca. Ele voltou com uma caixinha de madeira em mãos. Ignorando toda a dificuldade, agachou-se para ficar na altura da vista da pequena boticária e abriu a caixa, revelando várias esferas prateadas, diminutas contra o veludo que as aconchegava.

 – Leve uma dessas, e a enterre em seu jardim, em um lugar que bata sol. Molhe a terra sempre que passar mais de uma semana sem chover, e com o tempo, meses talvez, uma árvore irá nascer. – Ele sorriu ao ver o encanto nos olhos daquela pequena. – As pessoas se esqueceram das árvores, e elas temem o que não conhecem. Quando eu me for, o pomar inteiro irá também. Crie um novo, o pomar do seu jeito, e faça elas apreciarem a vida outra vez.

 A menina segurou a pequena semente como se fosse o tesouro mais importante que alguém poderia incumbi-la. Com todo o cuidado, guardou-a no bolsinho do vestido e ficou perdida por um instante, não sabendo se abraçava ou beijava aquele estranho bondoso, e por fim fez a reverência feminina que a mãe a ensinara.

 O velho a guiou para a saída dos fundos, caminho tão mais rápido para quem o conhecia, e ela correu para a vila, a mãozinha sobre o bolso guardando o presente.

 Ele a observou até sumir nas curvas da estrada e entrou. Na sala da lareira, a vila era emoldurada pela janela.

 – É, velhos amigos. Ei de um dia reacender aquilo que o Fogo quis apagar.

 As flores sorriram durante toda a semana.

MementoFlora

2 respostas para “Mini conto – Memento Flora”.

  1. Tantas coisas em nossa vida que o fogo destrói. A solidão vem. Sorte nossa que há pessoas – ou situações – como o velho bondoso, que apresentam um novo olhar. O novo pomar que a garotinha vai plantar é um novo sopro de esperança!
    Esse conto é tão lindo! Me apaixonei ❤

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    1. Adoro suas interpretações, Alan ❤

      Abraços!!

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