O comércio de elixires na Planície dos Trovões

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Jeanine a feiticeira segurava um frasco de cristal aberto em uma das mãos, e manobrava sua carruagem com a outra. Ela podia ver a tempestade se aproximando, e tinha esperanças de mais uma vez capturar a primeira gota de chuva antes que ela caísse no chão das planícies.

 A especialidade de Jeanine eram os elixires. Pequenas gotículas de vida estavam escondidas em todos os cantos da natureza, e quem sabia onde encontrar estas essências poderia misturá-las em poções capazes de fazer viver e pensar, até quando usadas sobre uma pilha de rochas. A maioria dos feiticeiros eram capazes apenas de criar golems sem emoção com seus achados, mas Jeanine fazia mais, e alguns de seus compradores acreditavam que ela era capaz de produzir almas.

 Isso, sabia ser exagero, porque por mais que ela se esforçasse em sua arte, cada uma de suas criações era imperfeita de alguma forma. Ainda assim, clérigos em todo o continente dariam grandes riquezas a qualquer um que os trouxesse a feiticeira, dizendo que ela devia ser punida pela heresia de competir com Deus.

 Imagine, o trabalho de Jeanine sendo ofensa tal que os partiam de seu amado ouro, aqueles clérigos mais avarentos que dragões! O pensamento a fez rir.

 Ela podia ouvir os trovões. A última vez que havia conseguido capturar a primeira gota de uma tempestade foi a vez que ela terminou o mais puro e cristalino elixir, de todos que fez antes. E de todas as essências que o compunham, a gota era a mais importante.

 A criação, Jeanine amou como um filho. Ela o manuseava com cuidado, o deixava em uma caixinha almofadada e passava pelo menos algum tempo do dia observando o filamento prateado que dançava dentro de seu frasco de cristal. Foi uma pena deixá-lo partir, mas ela precisava do dinheiro para sobreviver o inverno. E graças a ele, sua criadora estava a meio caminho do Grande Bazar da Gruta e perseguindo outra tempestade.

 Porém, havia sido uma longa viagem até aquele ponto. Após ter criado o puro elixir, a tempestade rugiu sobre as planícies, e Jeanine teve que recorrer ao vilarejo mais próximo. A carruagem dela acabou cruzando o destino com uma lamentável visão no meio da estrada. Uma pequena caravana havia sido atacada por bandidos, e ali jaziam os cadáveres dos guardas falhos, ao redor das montarias e as ruínas de sua escolta. Jeanine desceu do veículo, abriu um novo frasco e coletou muito da tristeza que encobria a cena, e entre os corvos famintos que se arriscavam na chuva, ela recuperou algum couro das armaduras, única coisa de valor que os bandidos haviam deixado para trás. Porém, dentro dos escombros, Jeanine viu o corpo de uma mulher, e por baixo de seus véus se encontrava um lampejo que mais ninguém viu. Um medalhão de ouro, decorado com o símbolo da Duquesa de Pico da Rocha. A feiticeira guardou a peça, e com sua carruagem, seguiu o inverso do caminho que a caravana fazia antes do ataque.

 Era noite e ela estava encharcada quando finalmente chegou à vila na planície, guardada por uma fortaleza de pedra e altas muralhas. Guardas, instalados em pequenas torres um de cada lado do portão, barraram a sua entrada. “Quem se aproxima dos portões dos Salões da Planície a esta hora e durante uma maldita tempestade?” Um deles entoou com raiva, enquanto descia de sua guarita para verificar a visita inesperada.

 “A Duquesa de Pico da Rocha! Preciso abrigar-me nos Salões da Planície, pois tive um encontro infortuno com bandidos na estrada!”

 Eles não acreditaram em suas palavras, mas a escuridão e a chuva encobriam a sua imagem, escondendo qualquer diferença entre Jeanine e a Duquesa. O guarda se aproximou e disse “A Duquesa voltou para as terras de seu nome junto de seus melhores homens e alguns dos nossos próprios! Como meros bandidos acabariam com todos eles?”

 “Eu não saberia dizer, bravo guerreiro, pois fui aconselhada a retornar assim que o ataque começou. Espero que os nossos retornem vitoriosos.” Ela respondeu. “Vejo que têm dificuldades de acreditar apenas em minhas palavras, pois bem, eu tenho como prová-las.” Dizendo isso ela segurou o medalhão pelo cordão, deixando-o pender à luz da tocha. O seu brilho dourado refletiu no olhar do guarda curioso, que por um momento deixou-se levar pelo cintilar da joia e as palavras sem som que se formavam nos lábios da feiticeira. Com um movimento abrupto o encanto terminou, e ele sorriu amavelmente para ela, respondendo “Ah minha Lady, É um grande infortúnio o que veio a acontecer na estrada. Deixe-me leva-la até o Conde, talvez ainda haja tempo para vocês jantarem juntos. Abram os portões!”

 E foi assim que Jeanine se encontrou no interior do abafado castelo. Sua carruagem, seus pertences e cavalo guardados pelos rapazes do estábulo. Ela seguia os guardas em direção ao salão de jantar para ser apresentada diante do Conde. Era preocupante ter de vê-lo em pessoa, mas simplesmente não podia recusar o convite, arriscando seu disfarce. Ainda assim, o seu talento para o improviso ficava guardado como uma carta na manga.

 No caminho até lá, Jeanine ouviu a discussão acontecer. Uma porta foi aberta com força, e um rapaz bêbado marchou para fora. Atrás dele vinha a voz rancorosa de um homem cansado. “Seu menino sem valor! Amaldiçoo o dia em que a sua mãe te expeliu no mundo!”. Da sala, o cálice fora jogado na direção do jovem. Ele desviou, riu e seguiu em direção das escadas, despreocupado.

  Passando pela comitiva da visitante, o nobre a observou por um instante. Circulando as armaduras, ele se aproximou e tentou olhar por debaixo do capuz molhado que encobria o rosto dela. “E quem é esta aí?” o rapaz perguntou. O guarda do portão havia a acompanhado todo o caminho até ali, se pôs entre os dois. “Quem é esta aí?! É a Duquesa, senhor! Mostre respeito!

 O outro apenas riu. “Olha, posso ter bebido além da conta, mas ninguém perde metade da largura em seis horas de estrada!”

 O soldado enrubesceu e puxou o jovem para longe do grupo. Ele falou em tom baixo, mas Jeanine podia ouvir trechos da conversa. “Perdeu a cabeça menino?!… Seu pai já está furioso com você, vai insultar a duquesa ainda?!… Te conheço desde que era um pirralho… Deixe os adultos conversarem ou irá se ver comigo!” Seja por causa do feitiço ou cansaço com a postura irreverente do nobre, o guarda estava furioso. Mas o outro parecia estar só entediado e sem necessidade alguma de discrição. “Tudo bem, tudo bem, Sir Gebert, pode ser que eu esteja muito bêbado mesmo. Vou deixar os velhos com suas conversas políticas, embora a Duquesa esteja um tanto, uhm, exótica hoje. E não esqueça, Sir, de quem é meu pai, quem sou eu, e quem é você. Por sinal, não deveria estar cuidando de um portão neste momento?”

 Dito isto, o jovem se direcionou a Jeanine, fez uma reverência zombadora, entoou “M’lady”, se virou e continuou seu caminho, aos tropeções e escorado na parede, escada abaixo.

 Sir Gebert retornou a ela. “Desculpe, senhora. Conhece a perversidade do menino, ele é irreparável.”

 “Sem problemas, é melhor que ele nos deixe a sós, mesmo. Tenho assuntos para discutir com o Conde.” Ela disse com um sorriso, enquanto era guiada sala adentro.

 Jeanine foi anunciada como Duquesa de Pico da Rocha, detida na estrada por bandidos, e entrou na sala. O velho, gordo Conde estava sentado em uma cadeira de encosto alto no meio de uma longa mesa, virado de frente para a porta da sala. Toda a decoração ali parecia ter séculos de idade. Como ela esperava, o outro estava surpreso ao observá-la. “Como…?” Ele começou, mas a feiticeira foi mais rápida. “Ah , Conde, eu quero te dizer tudo sobre o infortúnio na estrada! Mas ainda estou tão nervosa que a mera presença dos guardas aqui me deixa de cabeça leve! Pode mandar que seus homens nos deem um momento de privacidade, irmão?”

O Conde ficou vermelho, segurou o punho de sua espada nunca usada e a observou cheio de dúvida. Ele eventualmente disse para os guardas os deixarem, e pediu para Jeanine se sentar.

 A mulher a sua frente era de aparência jovem, e tinha longos e escuros cabelos cacheados que brilhavam à luz das velas. Suas feições, suas vestes gastas e excesso de joias baratas apontavam que ela não era nativa do reino, e em nada lembrava sua irmã. Mas o que o incomodava de verdade era a sua expressão, seus olhos negros inteligentes e o sorriso no canto da boca que eram sinais de que ela sabia mais do que mostrava, isto sim o enlouquecia.

 “Como sabe que a Duquesa de Pico da Rocha é minha irmã? Só os nativos da Planície dos Trovões sabem dessas coisas.”

 “Tenho meus jeitos de saber qualquer coisa que seja de meu interesse. O senhor poderia até me considerar nativa das planícies, se isso o deixa mais confortável.”

 Agora ele estava furioso.

 “Eu não sei como você passou essa sua história feia pelos meus guardas, mas admito que muitos de meus homens são simplórios na questão da percepção.”

 “Agora, eu sempre tive os olhos abertos – Olhos de Águia, me chamaram muitas vezes – Ainda assim você vem a esta casa com desculpa tão esfarrapada, tentando se passar por minha irmã!?  Não, bruxa, sua imagem está em todos os anúncios, daqui até a Capital, você é procurada pelas mais horrendas heresias!” Exclamou com paixão. “Então, o que você acha que me faria não levá-la à justiça, e aumentar a fortuna de meu condado com a recompensa que foi colocada em sua cabeça?” O Conde completou, com um sorriso cruel.

  “Bom, para começar, acredito que queira saber o que realmente aconteceu com a Duquesa, e vendo que eu tenho o amuleto que ela levava no pescoço em mãos, certamente não foi um destino agradável.” Jeanine respondeu. “E depois, talvez possamos fazer um acordo.”

 “Eu não faço acordos com bruxas! Diga-me o que aconteceu com minha irmã de uma vez.” Rugiu, com uma gota de terror em sua ameaça.

“Ah, eu lhe direi o destino de sua irmã.” Jeanine explicou lentamente. “Mas apenas se você me deixar passar a noite no castelo, me garantir um belo café da manhã ao alvorecer e der a palavra que ficarei segura durante minha estadia.”

 O largo Conde estava cansado pela discussão com seu filho, e não tinha paciência para controvérsias infantis. Com uma careta, ele deixou a feiticeira ter estadia no castelo.

 “Acredito que você não vai gostar da notícia, então continue sentado” Ela disse, enrolando um dedo em seus cabelos escuros. “Veja, eu não estava mentindo quanto te disse que a caravana havia sido atacada por bandidos.” Ela já podia ver a tristeza nos olhos do homem. Quem dera ela ter poder para capturar essa essência. “E ninguém sobreviveu. O amuleto foi a única coisa que não foi levada do local do desastre, seja por desatenção ou porque o emblema da casa da Duquesa atrairia olhares indesejáveis nestas bandas.”

 A história pesou nos ombros do Conde e ele pareceu envelhecer uma década. Mas seu pesar não demorou a se tornar raiva novamente. “E o que me faria acreditar nas palavras de uma maldita feiticeira, e ter fé que as mortes dela e dos soldados não foram causadas pelos seus feitiços?!” Ele resmungou.

 Com um sorriso, Jeanine respondeu “Você tem minha palavra, e os cadáveres caídos no meio da estrada principal. Amanhã, poderá enviar alguns homens mais preparados para procurá-los, e descobrirá que eles estão cobertos de cortes causados por espada e adaga. Veja, Conde, eu não sou mais do que uma mercadora solitária, e não tenho ouro para contratar protetores, muito menos mercenários o suficiente para atacar uma caravana tão bem defendida!”

“E ainda assim você não é atacada por bandidos. Maldita! Não acredito nestas palavras. Chamarei os guardas!” Foi a resposta.

 Jeanine mordeu os lábios. Quase lá. “E se eu pagar por minha estadia? Com todo o meu estoque de elixires e essências? Sei que Salões da Planície é um centro para todo tipo de comércio, e se tem visto os anúncios direito, sabe que os meus elixires são famosos. Um frasco pode valer até mais que um cavalo de boa linhagem. Eu tenho várias dúzias.” A oferta soou desesperada, como era para ser.

 O Conde podia ter um forte senso moral, mas também tinha uma forte ganância, e a oferta o deixou pensativo. “Eu suponho que isso cobriria os custos dos homens falecidos. Mas não de minha irmã.”

 “Imaginei isto.” Ela respondeu. “E por isso eu lhe ofereço meus serviços. Pense, Conde se tem algo em seu belo condado que poderia ser melhor, qualquer coisa que levaria embora as frustrações de sua vida?”

 “Eu não faço acordos com bruxas!” Ele repetiu, agora sem tanta convicção.

 “Mas é claro que você não faz. Não pense nisto como um acordo, pense como um presente por sua gentileza com uma pobre mercadora que foi pega no meio de uma tempestade.” Os olhos dela cintilaram. Jeanine o levou para o caminho que ela queria, e agora o Conde entre a ganância e a moral, estava a sua mercê. “Se posso aconselhá-lo sobre um presente, que tal seu filho?”

 A última palavra despertou o Conde de seu dilema por um instante. “Ignacio? O que tem ele?”

 “Deixe-me dizer algumas coisas sobre ele. Eu quero que você me corrija caso eu faça alguma injustiça sobre a pessoa dele, mas acredito que a descrição que farei será bastante fiel.” Dito isso, ela começou o discurso. “Ele é um rapaz jovem e saudável, porém tem a má companhia de amigos que o apresentaram a luxúrias e vícios, sempre o distraindo do dever. Ele tem sido mais interessado em jogos de dados do que aprender a liderar, e mais um ávido bebedor do que um ávido pensador. No geral, você acredita que ele não está pronto para liderar o condado.”

 O Conde ficou sem palavras. Era uma descrição perfeita de seu filho qual ele havia perdido as esperanças. “Você é certamente algum tipo de vidente! O que está insinuando, você pode trazer alguns bons modos a ele?” Perguntou incrédulo.

 “Acredito que posso. Já fiz trabalhos similares antes.” Ela mentiu.

 “Então talvez você seja na verdade um presente de Deus. E eu acredito, da mesma forma que você entende Ignacio, você entende minha tristeza em ver sua condição. Meu maior desejo seria ele se tornar alguém capaz de assumir meu título.”

  “Bem, este é um presente enorme.” Ela disse com um sorriso. “Vai me levar algum tempo para prepará-lo. Que tal isto: Se um baile de máscaras for arranjado para daqui a uma semana e o senhor garantir minha estadia até o baile, farei um feitiço que mudará os modos do jovem, e ele será o homem que assumirá o seu condado.”

 “Uma semana com você aqui, e ainda fazer uma festa por isso?!” Ele exclamou exasperado, mas então segurou a raiva. “Bem… É pelo meu filho e pelos Salões da Planície. Faz muito tempo desde o último festival, de qualquer modo. Muito bem, muito bem, pode ficar! Mas após o baile e o feitiço, fora!”

“Obrigada por sua gentileza, meu lorde.” Ela respondeu. Com essas palavras, foi levada até a porta pelo Conde, que a apresentou aos guardas como sendo uma importante emissária do rei, usando a identidade de sua irmã para não chamar a atenção de inimigos do reino nas estradas. Ela passaria a semana nos aposentos da torre norte, e sua carruagem, cavalo e pertences deveriam ser mantidos seguros.

 Assim Jeanine ficou em Salões da Planície até o dia do baile. É claro que os homens do Conde acharam a verdadeira Duquesa, logo deixaram de ter confiança na feiticeira e passaram a temer sua presença. O povo inventava rumores horríveis sobre ela e o que ela fazia em seus aposentos, pois desde que chegou a mulher era raramente vista fora da torre. O Conde fez o melhor que ele pôde para acalmar o humor da população. Às noites ia se deitar tenso, e repetia “Por meu filho, e por meu povo”. Em seu coração sabia que era para ele mesmo.

 A noite do baile começou com os salões do castelo mais vivos do que eles tinham sido em anos, cheios de convidados de terras distantes. As cores, bebidas e perfumes se moviam por entre os foliões no mesmo compasso da música. As fantasias passaram todas as expectativas. Uma moça coberta em penas brancas imitava a aparência de um cisne, e ela estava encantada com um lorde que usava seda verde esmeralda, com a face escondida por uma máscara sorridente. Também havia uma pequena figura, sua máscara como um bico e coberta dos pés a cabeça em um estranho couro tingido de vermelho que chamava a atenção simplesmente por sua bizarrice.

 Finalmente, o Conde encontrou a feiticeira no meio da multidão. Ela usava um vestido vermelho comum coberto de joias douradas, à sua maneira cigana. “Então você finalmente decidiu sair de seu exílio! Não consigo achar meu filho em lugar algum, e acredito que você tenha uma resposta quanto a isso.” Ele disse.

  “Seja paciente, Conde.” Jeanine disse. “Pois seu filho deverá aparecer em alguns instantes. Está feito, meu lorde.” Dizendo isso, ela se embrenhou entre os convidados.

 O Conde esperou pelo o que parecia ser uma eternidade até que o filho apareceu. Ele estava vestido galantemente, mas não de fantasia. Tinha a expressão de um homem sério, ignorou seus amigos de sempre, preferindo a companhia de lordes, duques e condes de outras terras. Ignacio se manteve sóbrio até tarde e suas conjecturas eram inteligentes e educadas.

Quando o baile estava quase no seu fim, a feiticeira aproximou-se novamente do Conde. “Então, este é o filho que sempre desejou?” Ela perguntou. O homem, com lágrimas nos olhos, respondeu. “É mais que eu posso pedir. A mãe dele estaria orgulhosa, se tivesse vivido até esse momento! Talvez você tenha salvo o futuro de minhas terras, feiticeira. Quer saber, peça a qualquer guarda para carregar sua carruagem novamente com todas as quinquilharias que te pertencem. Eu não preciso delas, você provou ser verdadeira.”

“Obrigada, meu lorde.” Ela respondeu. “Sua gentileza não tem limites. Agora devo ir, pois estou mais que pronta para a minha jornada à leste, e nada mais me segura nestas terras.”

 Jeanine se foi, encontrou-se com a pequena, bicuda e agora bêbada figura e a arrastou pelo salão em direção ao pátio onde sua carruagem estava. Na porta que dava para o exterior, porém, ela se virou e olhou nos olhos de Ignacio, observando uma última vez sua obra prima, sua essência mais pura.

 Não foi difícil convencer Ignacio a ir aos aposentos dela antes do baile, especialmente depois dela espalhar a história de que haveria uma competição de fantasias, e quem continuasse não reconhecido até o final da festa venceria. Ela o atraiu dizendo possuir uma fantasia que jamais revelaria sua identidade. Nos aposentos da torre norte, ela o mostrou o pequeno e estranho traje de couro que ela havia costurado com os farrapos das armaduras encontradas na estrada. “É muito pequena!” Ele reclamou, “Eu não vou caber, e ela é nojenta! Cheira estranho e nem tem ornamentos!”

  “Este é o truque! Ninguém vai acreditar que é você.” Ela respondeu. “Tenho um feitiço para te fazer caber nesta fantasia, e também farei uma imagem de você, uma ilusão, que irá à festa em seu lugar. Nenhum de seus amigos esquecerá isto!”

 Depois de um pouco de persuasão, ele concordou. Jeanine estava apreensiva quando usou um de seus frascos de coletar essências para conter a alma do rapaz, não tinha certeza de que isso funcionaria. Para o seu alívio, ela capturou a alma dele da mesma forma que coletava a essência do orvalho.

 Quando tirou o frasco de sua obra-prima da bolsa, ela o beijou. Jeanine abriu-o e deixou o elixir ganhar força sobre o jovem corpo sem emoção. Depois, deixou a alma se agarrar ao traje de couro, que ganhou vida.

 Ele acreditou nas palavras da feiticeira e foi para o baile festejar e zombar de seus amigos. Ela ficou e teve uma conversa com seu filho.

 Agora, com um último trocar de olhares, o elixir em corpo de homem sabia que era a sua hora. Ele pediu a atenção dos convidados que ainda restavam na festa, e ao seu lado o Conde sorria.

 “Senhoras e senhores aqui reunidos! Eu sou grato por ter todos aqui esta noite, e também por conhecer muitos dos mestres das terras que rodeiam a de meu pai. Minha família tem uma história infortuna, a Condessa falecendo durante meu parto, seguida por meu tio, que partiu cedo pelas garras da peste, e agora a pobre Duquesa, assassinada por bandidos. Pico da Rocha, a terra de meus tios, está solitária, com um menino de sete anos em seu trono. Mas ainda assim, nosso sangue é forte. Resistiremos nas planícies à raios e à trovões!” Alguns deram vivas.

 “Saibam que no dia que estas terras forem minhas, vocês terão o maior aliado que podem ter ao seu lado. Tenho planos para reforçar nossas alianças e tornar as planícies o lugar mais próspero do reino! Nunca faltarei em minha palavra, e espero também que vocês sejam leais às suas, pois hoje assumo este condado!” (melhorar). Dizendo isso, ele puxou uma fina espada de dentro de sua capa e acertou o pescoço do velho Conde, o matando instantaneamente. Sir Gebert, furioso, avançou na direção do jovem, espada em mãos, apenas para levar um destino parecido. Os que assistiam estavam em choque.

 “O mesmo acontecerá com qualquer um que se opor à minha vontade, pois agora sou o Conde dos Salões da Planície, em todo o meu direito!” Ele se virou para um guarda próximo, que estava amedrontado. “Chame todos os homens aptos à usarem armas em Salões da Planície, temos que nos preparar. Não deixarei Pico da Rocha nas mãos de um pirralho!”

Os convidados ficaram divididos entre fugir e prestar lealdade ao novo Conde. O povo dos Salões da Planície procurou a feiticeira, sabendo que ela tinha culpa do ocorrido. Mas esta já estava para muito além dos portões, e em seu estoque, feito de couro puído e a alma de um jovem, o golem bêbado se debatia numa jaula. (retrabalhar)

 Ele passou um bom tempo desmaiado, mas agora Jeanine podia ouvi-lo se debatendo em sua prisão. Quando acordou, Ignacio estava chocado de se ver aprisionado daquela maneira, e ainda usando as ridículas roupas do baile. Mas ao tentar tirá-la, ele percebeu que doía como arrancar a própria pele. Com medo e como única certeza a de que a bruxa havia lhe traído, ele bateu contra as barras na esperança de que alguém ouviria seu pedido de socorro. De nada adiantaria, porque embora a carruagem parecesse pouco mais que um caixote sobre rodas, seu interior se estendia labirinticamente, em proporções muito além de qualquer castelo que Ignacio pisara um dia. Apenas do banco do cocheiro podia-se ouvir o som das grades, leve e perdido como num sonho.

 Era mesmo triste deixar um elixir tão perfeito para trás, mas Jeanine sabia que ele nunca seria um bom serviçal, pois como todas as suas criações, até mesmo esta tinha um defeito: nunca se contentaria com pouco, e sempre acharia ter pouco. Agora, o jovem golem no estoque, mesmo não sendo muito brilhante e chegado em bebidas, tinha sido treinado nas maneiras dos nobres e após algumas duras lições seria muito mais precioso do que um frasco de elixir. Talvez até mais que todo o estoque que ela tinha em mãos.

 O advento deu ideias a Jeanine. Ela poderia usar almas ao invés de essências mais vezes, e vender ótimos golems ao invés de meros elixires em sua barraca no Grande Bazar da Gruta. Ela ficaria mais rica que qualquer outa feiticeira no reino rapidamente.

 Não. Ela não poderia. Abandonar a coleta de essências seria para ela como abandonar a sua razão de viver. A sua essência.

 Desta vez, ela não conseguiu capturar a primeira gota de chuva, mas enquanto ela viajava em direção ao bazar e debaixo da tempestade, mantinha o frasco próximo. Quem sabe que elixir pode conseguir, com o choque de um assassinato e a última gota de uma tempestade?

 

 

FIM

10 respostas para “O comércio de elixires na Planície dos Trovões”.

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  2. Olá, gostaria de dizer que gostei muito do seu conto. Fiquei de boca aberta com a morte do conde e com a esperteza da sua personagem. Parabéns, era exatamente o tipo de conto que eu estava procurando para ler e me inspirar com os meus!

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    1. Olá Wanderson!
      Obrigada! Não sabe como é importante para mim saber disso 🙂 Quero ler seus contos depois!

      Abraços e boas leituras!

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